Geopolítica do Degelo

Que a política internacional se move em um cenário dificilmente imaginável faz apenas vinte anos é dificilmente questionável. No mundo mudaram fronteiras, regimes, sistemas econômicos e composição populacional, mas cada vez mais apresenta-se como factível, em um futuro que já começou, a ocorrência de alterações no próprio suporte físico sobre o qual se traçava a velha geopolítica. Desde a intervenção de Blair no passado ano, assumindo a seriedade do que se vem denominando ‘câmbio climático’ (antes chamado, de forma mais sinistra, ‘aquecimento global’), parece que em efeito algo, ainda não sabemos bem o quê, vai mudar.

Sem entrar na polêmica de se este aumento da temperatura média oceânica vem dado por causas naturais ou ligadas à ação humana (existindo argumentos válidos em ambos sentidos), a possibilidade de que a tendência das últimas décadas continue durante as seguintes chama a repensar os possíveis cenários e conseqüências nos que pode derivar. Sabemos que o Ártico é a parte do planeta na que de forma mais sensível se vêm evidenciando as pegadas deste fenômeno, diminuindo a área coberta de gelo em 14% e a densidade da mesma em 40%. Segundo a NASA, a predição é que o gelo ártico venha a diminuir 10% por década.

Desde o ponto de vista da segurança, esta vastidão despovoada apenas começou a ser uma região chave desde 1945 e até a queda do regime soviético, com profundas implicações não apenas para a União Soviética e os Estados Unidos senão para toda a comunidade internacional. Enquanto os submarinos nucleares sob os casquetes polares resultavam então a imagem quotidiana dos filmes da Guerra Fria, hoje, depois de mais de ma década de aparente tranqüilidade, as evidências do progressivo degelo polar além do paralelo 60 colocam de novo à região no tabuleiro estratégico.

Se bem é possível trazer à tona a problemática dos recursos naturais, não se trata este do único fator de tensão. Certamente na Groenlândia existem várias minas de ouro e diamantes e, desde 2004, têm-se outorgado licenças para exploração dos recursos fósseis (gás e petróleo) disponíveis sob o Estreito de Davis (na sua vertente dinamarquesa), sem entrar a abordar os importantes bancos pesqueiros, cujo controle, em um tempo no que as áreas tradicionais de pesca estão prestes à extinção, fica em função do reparto das águas territoriais. Mas, neste caso, são as alterações geográficas provocadas pelo degelo a clave dos problemas, centrados especialmente na área do Passo do Nordoeste.

‘Passo do Noroeste’, um sonho dos navegantes europeus desde o século XV, é como se denominou a uma hipotética rota marítima que, através do arquipélago ártico, conectaria os oceanos Atlântico e Pacífico. Um galego, Francisco de Ulhoa, foi o primeiro a tentar achar em 1539 o mítico Estreito de Anián, e durante séculos numerosas expedições tentaram completar a façanha, ainda que só no século XX se conseguiu efetuar a travessia completa, graças aos avanços técnicos e algumas ajudas adicionais. E é que, com o degelo, começa a apresentar-se como factível a possibilidade de que o Passo do Noroeste resulte navegável para embarcações convencionais, quanto menos durante parte do ano, em não muito tempo.

De abrir-se o passo ao tráfico marítimo internacional recortar-se-ia o recorrido entre Europa e Ásia em 5.000 milhas náuticas, o que beneficiar especialmente aos grandes petroleiros que pelas suas dimensões não podem atravessar o Canal do Panamá devendo circunavegar toda a América do Sul. E aqui começam os problemas. Canadá, Dinamarca, Rússia e Noruega consideram partes do Ártico como ‘águas nacionais’ enquanto os Estados Unidos e a maior parte dos países da União Européia consideram o Estreito de Nares águas internacionais. Estas dissensões já provocaram as primeiras amostras de uma remilitarição do Ártico, que afetaria não apenas à segurança, mas também de forma sensível aos já de por si frágeis ecossistemas da região. As primeiras manobras estão a acontecer.

Em Abril de 2006 as forças armadas canadenses decidiram referir-se à região apenas como ‘Águas Internas Canadenses’, omitindo a denominação ‘Passo do Noroestee’. Este fato produziu-se justo depois de completarem a ‘Operação Nunalivut’ (“a terra é nossa” em inuit), na que embarcações militares realizaram uma expedição nessas águas, respostando assim à presença de submarinos nucleares estadunidenses a finas do ano anterior (o que suscitou uma forte polêmica, antes as reivindicação estadunidense do caráter internacional das águas do Ártico).

Mas a evidência, mediática quanto menos, das tensões (neste caso entre a Dinamarca e o Canadá) produziu-se sem dúvida em julho de 2005. O 13 de julho soldados canadenses deslocaram-se até a Ilha de Hans para colocar uma placa e o seu pavilhão nacional, seguidos, uma semana mais tarde, pelo próprio ministro da defesa daquele país, Bill Graham, visitou a ilha, desencadeando uma forte crise diplomática. No dia 25 de julho o governo da Dinamarca anunciou o envio de uma carta de protesta e um dia depois o delegado do governo para Groenlândia denunciou a ocupação canadense da ilha.

Não é preciso explicar que esta pequena ilha desabitada, com de apenas 1,3 quilômetros quadrados de superfície, situado no médio do Estreito de Nares (que separa a ilha canadense de Ellesmere do norte da Groenlândia), é apenas a ponta do iceberg das disputas territoriais árticas nas que se vê envolto o Canadá. Descoberta na segunda metade do século XIX e nomeada aparentemente trás o explorador groenlandês Hans Heindrich, a sua soberania não foi aclarada no momento da delimitação de fronteiras entre os dois países em 1973 e desde então se vêm sucedendo as manobras de ambas as partes. Desde 1984, ano no que o ministro dinamarquês da Groenlândia visitou a ilha, as forças armadas da Dinamarca levam a cabo inspeções regulares (a última foi em 2003).

A parte de estar situada no meio do Passo do Noroeste, diversas empresas realizaram prospecções na área. Dome Petroleum chegou a trabalhar na própria ilha nos inícios dos oitenta e têm-se instalado já tanto plataformas como ilhas artificiais no estreito. Curiosamente, a maior das licenças concedida por Dinamarca foi à corporação EnCana, uma transacional sediada em Alberta, no Canadá. Além do Passo e dos recursos, ainda parecem existir outras motivações para por os pés na mesa.

As forças armadas do Canadá, e sua Armada em particular, vêm utilizado as disputas com a Dinamarca e os Estados Unidos como escusa para maiores inversões em fragatas preparadas para condições árticas, como das que dispõe estes países. No seu particular plano para uma guerra de estrelas boreais, o Ministério da Defesa do Canadá, que lançou um ambicioso programa de cinco anos para reforçar sua presença nos territórios do Norte (incluido um sofisticado sistema de radares e satélites [1]), tenta de alguma forma confrontar a longa tradição militar ártica dinamarquesa, cujo exército se encontra ademais em pleno processo de renovação do qual sairão fortalecidas suas capacidades de projeção estratégica polar [2].

De alguma forma, para o Canadá, o Passo do Noroeste a Ilha de Hans representa o desafio, político e militar, de defender os territórios que reclama para si. Como no antigo modelo colonial africano, se não existe a capacidade de defesa de um território, não se pode falar de controle efetivo. O perigo apresenta-se de produzir-se uma escalada do conflito, pois os demais países com territórios e interesses árticos poderiam entrar no jogo. As rápidas mudanças que o aquecimento global está a provocar bem poderiam precipitar estas reações, pelo que a atenção e resposta por parte das instituições internacionais devem ser acertadas.

Joám Evans Pim é Presidente do IGESIP e Professor da
Universidade de Santiago de Compostela



Notas:
[1] O sistema atual, o RADARSAT-1, tem capacidades de vigilância limitadas, o que unido às reduzidas possibilidades de resposta dificultam o controlo destes territórios. O RADARSAT-2, no que se está a trabalhar, deveria corrigir estas deficiências. Outro problema reside no fato da Armada canadense apenas ter capacidades para operar no Ártico durante algumas semanas de Agosto e Setembro, pois não possui navios capacitados para atravessar o gelo. Em parte, pretende-se diminuir esta trava mediante a aquisição de aviões não-tripulados e novas e melhoradas aeronaves ‘Twin Otter’.

[2] A idéia do exército dinamarquês é aumentar a capacidade das forças a projetar na Groenlândia, o que se complementará com a reposição de duas das patrulheiras corta-gelo classe ‘Agdlek’. Na atualidade a Dinamarca dispõe de quatro fragatas classe ‘Thetis’ de duplo casco para uso em condições árticas e com autonomia de 16.000 km e que habitualmente navegam equipadas com um helicóptero Lynx. A diferença do Canadá, que baseia a defesa dos seus territórios árticos nas ‘milícias’ de nativos (os ‘Rangers’) e algumas forças regulares, a Dinamarca dispõe de forças especiais, os ‘Slæede patuljen da Frømandskorpset’, destinas ao controlo da Groenlândia. Os F-16 da ‘Flyvevåbnet’ podem voar, e já o têm feito, desde Ålborg, sua base na Dinamarca, até Søndre Strømfjord, na Groenlândia e helicópteros, como os AS 550 Fennec, também podem ser mobilizados para os territórios do norte.

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