Recordação precipitada de Alexandre O'Neill

Alexandre O'Neill tinha ascendência irlandesa de um foragido do século XVIII

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Ó PORTUGAL, se fosses só três sílabas/linda vista para o mar…". Alexandre O'Neill. Este homem, este poeta, desnudado das palavras a quem atribuía o epíteto de "animais doentes" pela constante tentativa de as tornarem "bonitinhas", tinha o condão da cumplicidade com o leitor. Mesmo quem nunca o leu repete-lhe os estribilhos ou versos com que denunciou este país feito de pessoas importantes, lídimas corredoras de carreiras assentes no "respeitinho" e em "deuses e deusecos" omnipresentes e servis: "País engravatado todo o ano/e a assoar-se na gravata por engano". Estou a falar da expressão "vidinha" com que nos abanou as consciências monótonas de um país alienado e anestesiado "A poesia é vida? Pois claro!/Conforme a vida que se tem o verbo vem/ e se a vida é vidinha, já não há poesia/ que resista". Alexandre O’Neill tinha ascendência irlandesa de um foragido do século XVIII, sabe-se lá de quê, e que veio desgraçadamente aportar a Lisboa. Portanto, O'Neill lisboeta, crítico do provincianismo capital, de "ombro na ombreira" como quem espera, um dia qualquer, sair da sombra da porta, dar o ombro aos outros e criar a vida poética verdadeiramente livre "Quando tudo escombro/ ainda todos seremos/ ombro na ombreira" e que o levou a excessos em que, disse, "fez do corpo uma alavanca para o mundo, sem pensar no futuro". Inventou a vida, ultrapassou o quotidiano repressivo, amou intempestivo, morreu novo. Cá o temos, a alavanca da escrita que o levou a fundar o Grupo Surrealista de Lisboa em 1947. Saiu de lá logo no ano seguinte porque António Pedro, ministro salazarista sabidão, expôs os surrealistas num salão não sem antes aceitar o lápis azul da Censura. O'Neill, parte para outra, e, nos Cadernos Surrealistas, edita Ampola miraculosa. Tem a sua Nadja, o seu amor louco com Nora Mitrani, surrealista francesa. A polícia política e a família impendem-no de se lhe juntar em Paris. Não mais a vê. Acede, cuidadoso, aos neorrealistas, cansado do conví-vio com "fantasmas", sem que se lhe conheça militância ativa. Traduz Ubu de Jarry, Brecht. Escreve nos jornais. Colabora em teatro e cinema. Encontra em Tolentino, Cesário Verde, Pascoaes —que chegou a conhecer escrevendolhe uma "Recordação precipitada"—, Álvaro de Campos, uma influência a que não foge, como aceita a fórmula para si próprio de um "grande poeta menor". À questão que lhe é colocada em 1962 de qual seria o seu defeito ele responde: "sentir o desencanto". Para um poeta perder o encanto do mundo é perder igualmente o dom das palavras e da vida. Não o perdeu. Portugal para ele continuou a sua Feira cabisbaixa de 1965: "…Feira cabisbaixa, meu remorso,/ meu remorso de todos nós".

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